Quem acompanha o rock gaúcho (de perto) sabe que é impossível falar dele sem mencionar as demo-tapes. Isso porque na minha opinião e de muitas outras pessoas que agora não vem ao caso, os grandes registros estão nesse formato bagaceiro e com péssima qualidade que é a fita cassete. As demo-tapes são verdadeiras pérolas. Independente da qualidade das gravações, o que eu coloco em jogo é a qualidade das composições e principalmente da execução. Que fatores realmente fazem com que isso aconteça eu não sei e nem sei se alguém consegue explicar.
Mas porque isso acontece? Por que nessas demo tapes é que estão os melhores registros? Seriam tantas as explicações e quem sabe justificativas. Em minha modéstia avaliação de colecionador e ouvinte do rock gaúcho desde muito tempo, diria que um dos elementos principais é a despretensão. Quando se faz alguma gravação com a intenção de ser um disco, cedê, devedê ou não sei o quê, a coisa fica séria demais e acaba muitas vezes perdendo a identidade (ingenuidade) e mais do que isso a originalidade inicial.
Vou tentar comentar de forma rápida e sucinta alguns desses momentos que para mim são imbatíveis. Lógico que outras pessoas poderão fazer a sua lista de demos clássicas. É óbvio que eu não ouvi todas as demos que saíram, mas, enfim aí vai as mais-mais de todos os tempos .
Cascavelletes (1987 – Vórtex)
Sim, eu estou falando da clássica demo lançada pela Vórtex. Quem ouve aquela fita pode pegar todos os vinis dos Cascavelletes e deixá-los de lado. Isso porque é ali nessa primeira demo que se encontram as melhores gravações que os Cascavelletes fizeram em toda a sua história. A demo foi gravada em 1987 e mostra todo o vigor adolescente numa performance maravilhosa e muito bem executada. Quatro jovens emanando todos seus hormônios em canções provocativas e “indecentes”. É o reflexo musical de um humor tipicamente adolescente despretensioso e sem vergonha. São registros de quase todo repertório dos Cascavelletes. Algumas músicas nunca foram re-gravadas e talvez se tornaram clássicos por nunca terem sido incluídos nos LP’s originais. “Dotadão”, “Mini Saia Sem Calcinha”, “Banana Split”, “Estupro com Carinho”, são alguns exemplos. Recentemente uma versão pirata em cd está sendo comercializada nas lojas em Porto Alegre. Isso faz com que muitas pessoas possam entrar em contato com esse registro e se deliciar com esse material.
Graforréia Xilarmônica – Com Amor Muito Carinho (1988 – Vórtex)
Sou suspeito ao me referir a esta banda que na minha opinião é uma das melhores bandas que já surgiu na face da terra. Essa demo, que também foi lançada pela Vórtex é muito superior do que qualquer outra gravação que a Graforréia tenha feito nos anos seguintes. Ali encontramos a formação clássica da banda executando seus maiores sucessos de forma inacreditável. Marcelo Birck – voz e guitarra, Frank Jorge – voz e baixo, Carlo Pianta – voz e guitarra e Alexandre Ograndi – bateria. Quatro jovens dementes que se encontram e formam uma química perfeita entre desafinações, erros e acertos, Jovem Guarda e esquisitices em geral. É um caos sonoro com momentos de amor e carinho. Essa demo é um dos únicos materiais em que podemos presenciar os duelos de guitarras entre Carlo Pianta e Marcelo Birck que são indescritíveis. É nela que se estabelece e se concretiza a parceria nas composições entre Frank Jorge e Marcelo Birck. Diria que é um dos momentos mais sublimes que o rock gaúcho teve e quem sabe jamais terá.
Sangue Sujo – Punk Rock Afetamínico Que Matou a Modelo (1990)
Primeira banda do Wander Wildner logo após ele ter deixado os Replicantes. Simplesmente perfeita. Dá de mil e quinhentos a zero em qualquer bandinha de punk rock atual. Eles reformulam o punk rock paralelo as grandes bandas de punk rock melódico (Punk Colorido). Digo isso porque era o surgimento (na mídia) de algumas bandas como Green Day, Pennywise, NoFX, e o Sangue Sujo estava no mesmo pique e talvez com a mesma concepção só que sem aquele alarde de mídia todo que fizeram com as outras bandas citadas.
Ali encontram-se clássicos como “Não Gosto”, “DMLU”, “Burguês”, “Boa Morte” entre outros. Hoje com a facilidade de adquirir som, imagem, etc, as cópias acontecem de forma muito rápida. É comum encontrar clones de bandas famosas espalhadas por todos os lados. Mas naquele tempo as coisas só aconteciam com quem realmente tinha uma proposta semelhante mesmo que a distância.
Defalla – Megablasts From Hell (1991)
Essa demo é du caralho!! Ali encontram-se versões/cover para músicas de bandas que sempre influenciaram o Defalla. A gravação é tosca e ao vivo. O som é pesado, existem versões para músicas do Danzig, Public Enemy, Beastie Boys, Rolling Stones, Jimi Hendrix, The Doors entre outros. Parece estranho falar de uma demo cover. Mas em se tratando do Defalla, nada ali é realmente um cover. Tudo o que o Defalla tocava automaticamente se incorporava ao repertório da banda como se fosse deles, isso devido a forma única com que eles executavam essas canções. Mesmo sendo hardcore tem muita mistura com rap e funk e hip hop. Essa mistura na minha opinião sempre caracterizaram as melhores fases do Defalla.
Ali encontram-se algumas músicas em formato ‘Beat Box’ e voz coisa que Edu k sempre soube fazer e com muita propriedade de quem conhece tudo do estilo hip-hop-rua. Essa demo é o primeiro registro com o guitarrista Marcelo Fornazzo; os outros integrantes além do Edu K são Flávio Santos (Flu) no baixo e Castor Daut na bateria. No final, encontramos uma prévia de algumas músicas que integrariam o quinto disco do Defalla que os projetou a ponto de tocarem no Hollywood Rock abrindo pro Red Hot Chilli Peppers e Nirvana.
Aristóteles de Ananias Jr. (1993)
A Graforréia volta a ativa sem o Marcelo Birck. Ao contrário do que muitas pessoas acreditam, eles não estão brigados. Marcelo Birck está envolvido no seu novo projeto musical intitulado Aristóteles de Ananias jr. Tem uma demo de ensaio da Graforréia nunca lançada que é o Alexandre Ograndi tocando bateria o Marcelo na guitarra e o Frank no baixo. Juntando-se a isso Ricardo Frantz no violino e Luciano Zanata no Sax. Essa seria uma espécie de pré-concepção do Aristóteles. Sai o Frank e entra Chico Machado e posteriormente Pedro Porto, sai Alexandre Ograndi e entra Diego Silveira.
Esse é o Aristóteles da Demo, ou melhor do Demo!!! Essa primeira gravação é muito legal e mostra todo o espírito musical desconstrutivo que o Marcelo Birck apresentaria posteriormente de forma mais radical e automaticamente incompreendida e muito mais barulhenta. O cd é um caso a parte, mas ali a agressão musical está presente de forma mais sutil através um som esquisito e mais leve fazendo com que o ouvido assimile, mas estranhe e em alguns momentos (na maioria das vezes em muitos momentos) e perceba que tem alguma coisa de muito errado nessa história toda, e o que é melhor, de propósito.
Frank Jorge e Plato Divorak – Teen Idols Fora de Órbita (1993)
Dupla inusitada que teria tudo pra dar errado, mas pelo contrário. Uma química maluca entre dois seres não menos malucos (que a dupla) fazendo espetáculos e músicas absurdamente perfeitas e de igual teor. Para entender melhor o que eu estou dizendo aí vai um pouco da história. Frank Jorge, baixista da Graforréia, e Cascavelletes sempre teve inúmeros projetos musicais (esse é um deles). Quem o conhece sabe da inesgotável fonte criativa que paira no seu dia-a-dia. Juntando esse lado mais ou menos metódico e bem organizado com o Plato Divorak (codinome para Paulo Alex). Esse sim é louco de atar, mas com um potencial criativo inesgotável e inigualável. Suas metáforas para descrever o mundo são pérolas lapidadas por uma mente “barretista” desgovernada (se é que isso é possível). Só o Plato já merece uns vinte cinco capítulos à parte. Junte esses elementos acima com uma vontade de compor canções inspiradas em baladas sessentistas e muita lisergia. Aí está o registro perfeito. Tudo isso é ‘Teen Idols Fora de Órbita’. Pena que essa mesma loucura que impulsionou esse momento criativo fez com que a dupla se acabasse. Mas como eu sempre digo aí está mais um registro de um momento único do rock gaúcho.
Doiseu Mimdoisema – Nuca Mais Vai Passar o que eu Quero Ver (1994)
O que dizer desse momento mágico, quase infantil e totalmente alternativo do rock gaúcho? É simplesmente incrível. Diego Medina (El Senatore) o próprio, resolve com a ajuda de um porta-estúdio registrar toda sua debilóidice com participações inusitadas como o filho da empregada e afins. Resultado, uma obra-prima. Na época, a coisa se espalhou de forma inacreditável. Rendendo até mesmo um contrato com a Banguela Records. A lenda: a fita era uma gravação para um amigo. Alguém ouviu e gostou e fez uma cópia. Aos poucos a fita se espalhou e chegou até a rádio. Com uma proposta de tocar muitas coisas alternativas a rádio incluiu uma das músicas na programação. Resumindo, “Epilético” (a música) virou hit. Depois disso, e em função do contrato com a Banguela Records, Diego tentou montar uma banda para repetir o feito. Resultado disso tudo, algumas outras demos com algumas coisas interessantes, mas sem a mesma expressão da primeira. Se puderem ouçam Doiseu Mimdoiema e se deliciem com mais esse momento (quase raro) do rock chinelo e alternativo gaúcho.
Júpiter Maçã e os Pereiras Azuis (1995)
Essa demo é foda!!! Esse comentário poderia resumir tudo, mas vou tentar escrever alguma coisa a respeito. A demo foi gravada ao vivo num especial para uma rádio (NR – Brasil 2000) em São Paulo. Seria estranho incluí-la nessa relação se o principal protagonista dessa pérola não fosse Flávio Basso, ex-lider dos Cascavelletes com o seu primeiro trabalho em carreira solo. Na gravação é o Flávio Basso acompanhado pela banda Pereiras Azuis. A gravação é tosca, ao vivo mas com uma performance impressionante. É a irreverência em termos picantes que tinham os Cascavelletes só que cantado de forma mais aberta e direta. Letras que relatam muitas histórias de experiências com entorpecentes diversos, regados a muito sexo e rock and roll. São treze canções, treze clássicos que demonstram o lado lisérgico espacial e rock and roll, ou seja lá como que cada um define, e que se faria cada vez mais presente nos trabalhos posteriores tanto como Júpiter Maçã ou Apple. Nessa demo tem canções que nunca foram registradas posteriormente nos discos oficiais como por exemplo: “Hey Girl What You’re Gonna Do”, “Ela Sabe o Que Faz”, “Orgasmo Legal”, “Casalzinho Pegando Fogo” entre outras. É a demo que precede o excelente disco de estréia “Sétima Efervescência”.
Ultramen – 2ª demo (1995)
Registro perfeito da primeira formação da Ultramen. São seis músicas que apresentam a banda num segundo momento. Um momento inspirado. Onde as tecnologias não estavam muito presentes e o que se ouvia era um som pesado com balanço e muito hip hop. Nesse quesito poderia ter escolhido também a primeira demo da Ultramen. Pois lá se encontram muitos elementos e execuções imbatíveis de verdadeiros clássicos do hip hop gaúcho como é o caso da música “Hip Hop Beat Box com Vocal e James Brow”. Mas essa segunda demo é mais consistente e talvez per conter poucas músicas só tem coisa boa. É o último registro da Ultramen com o saxofonista Peru que atualmente mora na Europa. Depois a banda sofreu muitas modificações, principalmente depois do segundo disco, tanto na formação quanto na concepção musical. Mas essa demo é o exemplo perfeito de um registro inacreditavelmente bom de uma banda que se propõe a fazer black music sempre da melhor qualidade. Tem uma versão para a música “Dragon Attack do Queen” que é inacreditável, uma espécie de ragamuffin com peso balanço, escola de samba e beat box.
Comunidade Nin Jitsu – Aprovado Pelo Ravengar (1996)
Ainda com a participação do Mano Sonho, essa demo mostra toda sem vergonhice da Comunidade Nin Jitsu de forma crua e direta!! Primeiro registro sonoro de uma das bandas que viria se tornar anos mais tarde um verdadeiro “frisson” entre os adolescentes gaúchos. Baile funk com metal e letras picantes sempre alternando referências adolescentes de quatro jovens amigos que cresceram juntos e deram continuidade as brincadeiras de infância numa banda (quem diria que isso um dia iria tocar na rádio). Primeiro show que eu vi deles foi inacreditavelmente engraçado. Uma bateria eletrônica bagaceira, dois metaleiros cabeludos (ex-Borboleta Negra – banda de metal) estraçalhando em solos estapafúrdios em cima de bases eletrônicas e dois neguinhos (brancos) cantando. A química perfeita para recriação de um frankestein pós-moderno. E não é que deu certo. Sai do show impressionado e resolvi comprar a demo. A demo é o resultado daquela bagunça toda. Uma série de riffs de guitarra “chupados” de bandas clássicas, sempre com suas devidas citações. Letras bagaceiras, falando de coisas bagaceiras e de forma mais bagaceira ainda. Uma bateria eletrônica vagabunda com direito a misturas que vão de Guns And Roses a Jaime Caetano Braum, Beavis and Butthead e funk carioca. Química estapafúrdia que poderia resultar em muitas outras coisas menos num possível sucesso. Mas vai entender o mundo.
Smog Fog (1988 pela Vórtex e 1993 independente)
É possível uma banda possuir dois momentos em formato demo tape que são clássicos dentro da história do rock gaúcho? A resposta a essa pergunta é: Sim. As duas demos tapes da Smog Fog são perfeitas e refletem dois momentos da banda mais esquecida do rock gaúcho. Segundo o Baixista João Olair, o único que ainda lembra que a banda existiu sou eu o que é uma pena. Então aí vai: Smog Fog é uma cortina de fumaça com projeções lisérgicas. Tentarei ser mais claro ao defini-los, mesmo que isso seja um pouco inusitado. Isso mesmo talvez a palavra seja inusitado. Uma banda completamente non-sense, debilóide e que ao mesmo tempo representava o amor de uma forma quase lírica, talvez suicida e de forma inacreditável perfeita. Nunca teve um baterista fixo.
Mas o trio principal sempre esteve presente. João Olair – baixo, Felipe – vocais e Guilherme – guitarra e backing vocais. A voz do Felipe é algo impressionante e único. É só ouvir para perceber que não existe outra parecida no mundo. Os backing retardados do Guilherme faz com que o momento mais obscuro e depressivo se transforme num sorriso. O baixo estranho e a forma tosca com que são executadas as músicas principalmente na primeira demo (da Vortex) é impressionante. Na segunda demo, que acabou se transformando numa terceira, eles melhoram um pouco e perdem talvez esse lado mais tosco mas recuperam em melodias e execuções coisas impressionantes como é o caso das músicas “Labirinto” e “Não Sei Lê”. É um material difícil de conseguir e que mereceria um lançamento em cd.
Fonte: jackoldpunk.blogspot.com.br, numa terça-feira, dia 30 de junho de 2009.