Relicário do Rock Gaúcho

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[PRESS] ‘Jimi Joe: nenhum dano mental grave constatado

Arzelindo Ferreira Neto nasceu em Arroio Grande, em 1955. Já o canhoto Jimi Joe nasceu adolescente, tocando nos palcos de Porto Alegre, entre o final da década de 70, início dos anos 80. O nome artístico nem foi ele quem escolheu, mas acolheu, até para assinar seus textos como jornalista – e posteriormente como tradutor de algumas publicações. ‘Jimi’ é uma referência ao guitarrista, também canhoto e autodidata, Jimi Hendrix. O ‘Joe’, nem ele mesmo sabe ao certo.

Esta semana, Culturíssima conversou com o músico e jornalista Jimi Joe, um dos nomes seminais da cena roqueira que explode no Rio Grande do Sul no início da década de 1980. Jimi está finalizando seu mais novo álbum, Nenhum Dano Mental Grave Constatado, ainda sem data definida de lançamento. Também está voltando, em julho, aos microfones da Rádio Unisinos FM, do qual, além de locutor, exerce a função de coordenador de conteúdo, atividades que ficou afastado por dois anos, graças a uma licença médica.

É que após 10 anos de hemodiálise, em maio de 2013 Jimi Joe passou por um transplante de rins, pois sofria de uma doença renal policística. Um período nada fácil. Muitas destas dificuldades estão refletidas nas canções do novo disco, assim como também foram o ponto de partida para um novo momento na carreira: Los Três Plantados, banda composta por ele, Bebeto Alves e King Jim, outros dois músicos transplantados recentemente.

Nesta entrevista exclusiva, Jimi Joe nos contou um pouco de sua história.

Culturíssima: Como você veio parar em Porto Alegre?

Jimi Joe: Nasci em Arroio Grande, que fica entre Pelotas e Jaguarão, e me criei em Pedro Osório. Arroio Grande, em si mesmo, acho que nem conheço. Fui uma vez lá, quando era pequeno, que meu pai me levou. Vim pra Porto Alegre com 12 anos. Minha mãe era professora primária e meu pai ex-militar, em um casamento sempre na corda bamba. Em 63 teve a primeira ruptura, minha mãe pegou os filhos, éramos três irmãos, e fomos para Pelotas, ficamos um ano morando com a minha tia. Aquele ano não consegui ir pra escola, então fiquei em casa estudando com a minha mãe. Foi um ano sabático com oito anos, que eu fiquei fora dessas coisas oficias. Foi do caralho porque, com oito anos de idade, eu ia ao cinema sozinho, de tarde. Então eu vi vários filmes nos cinemas de Pelotas. Me apaixonei pelo Kirk Douglas, que era meu herói dos filmes de cowboy, Elvis Presley conheci no cinema também. Em 64 minha mãe reconciliou com meu pai e voltamos para Pedro Osório. Aí desandou de novo e acabou que viemos para Porto Alegre em 67. Minha mãe conseguiu um emprego na Secretaria de Educação.

Culturíssima: A música e o jornalismo, como entram na sua vida?

Jimi: Lá por 68, a minha irmã, que é cinco anos mais velha que eu, comprou um violão. Ela acabou usando muito pouco esse violão, na verdade. E eu comecei a me interessar, pois ficava em casa. Estava estudando, mas a maior parte do tempo estava em casa. Ela trabalhava o dia todo e estudava à noite, tinha pouco tempo pra pegar o violão. Eu ficava mais de vagabundo o dia todo, estudava à noite também. Comecei a pegar o violão e um dia ela viu, e notou que eu era canhoto. Em uma coisa instintiva, peguei ele invertido já. Comecei a tocar conforme o método que ela tinha comprado e vi que tinha alguma coisa errada, depois que eu saquei. Mas ela disse pra eu não mexer nas cordas, então aprendi a tocar os acordes pelo avesso. Mais tarde a gente começou a comprar a revista Violão & Guitarra, que tinha as músicas cifradas, e muito bem cifradas. E assim fui desenvolvendo, totalmente autodidata. Aos poucos fui começando a fazer músicas minha. Lá por 1975 foi quando fui para o palco a primeira vez, mas eu já vinha fazendo coisas antes. O jornalismo entra por acaso, em 75 também. No ano anterior eu me formei no segundo grau e sem cursinho, sem nada, me inscrevi no vestibular na UFRGS, em Psicologia. Na época, tu podia optar por oito cursos. Em sexta opção, lembro que coloquei Composição e Regência, um curso que hoje não existe mais. Quando vejo alguém me fala “Bah, passou na UFRGS, teu nome está no jornal”. É, passei? Aí fui ver e estava lá, aprovado em Composição e Regência. Eram 10 vagas, fui aprovado em nono. Acho que não teve décimo. Hoje este tipo de curso tem um teste prévio pra ver se tu sabe alguma coisa de música. Naquele tempo não tinha! Eu entrei sem saber ler partitura. Aí comecei a fazer o curso e fui investigar o currículo e descobri que eram 18 semestres, nove anos! Tu aprendia a base de toda uma orquestra. Aí pensei: cara, não vou me formar nunca nisso aqui. Continuei fazendo a UFRGS, mas também fui fazer um cursinho pré-vestibular no IPV, que era do José Fogaça, do Clóvis Duarte e de outros professores sócios. Em junho o Clóvis disse que tinham uma promoção: quem passasse no vestibular de inverno da PUC, recebia de volta a última mensalidade. Pensei: opa, vou beber essa mensalidade! Tinha um ranking da Playboy na época, com as melhores faculdades do Brasil, e a Famecos era apontada como a melhor faculdade de comunicação. É essa que vou fazer. Me inscrevi em jornalismo e passei. Aí meio que larguei a UFRGS e no segundo semestre já comecei a fazer jornalismo.

Culturíssima: Nesse mesmo ano você estréia nos palcos. Como foi?

Jimi: Foi no Teatro de Arena, nas Rodas de Som que o Carlinhos Hartlieb inventou. Quando comecei a tocar, na metade do ano, ele já tinha largado para fazer outras coisas. Em seu lugar ficou o Nelson Rolim, que hoje mora em Florianópolis, editor de livro há muitos anos. Fui lá um dia e me candidatei pra tocar e ele pediu uma fita. Na época, para qualquer pessoa, era muito difícil ter uma fita demo. Eu não tinha nem um gravador mini cassete pra gravar em casa, eu era chinelo mesmo. O que posso fazer é vir com o violão e tocar pra ti as músicas, disse pra ele. Morava ali perto, na Riachuelo, desci a escadaria do viaduto da Borges e busquei o violão. Ele gostou das músicas e falou: “Traz cópias datilografadas das letras, porque tem de passar na censura”. Poucos dias antes do show ele me chamou e disse que, das seis ou sete músicas, quatro haviam sido censuradas. E por bobagem, nem era uma coisa política específica, era uma coisa mais existencial de ah, estou de saco cheio do que está acontecendo, estas coisas. Aí deu né! Pô, vou tocar só três músicas? Ele falou não, vamos fazer o seguinte: quando eles mandam esse parecer, eles vêm no máximo na passagem de som. Na passagem de som toquei as três músicas e no show toquei todas. Nesse primeiro show eu ia tocar sozinho, e não ia ser fácil. Era, e sou ainda, muito tímido. Então falei com uma amiga minha, da época do segundo grau, que cantava. Expliquei que ia fazer o show no Teatro de Arena e pedi que indicasse alguém pra tocar comigo. Ela falou no João Antônio Araújo, que era amigo dela e trabalhava como assessor de um deputado na assembléia. O João Antônio depois viria a abrir o Sargent Peppers, aquele bar na Dona Laura, junto com o Xandy Vieira, os dois também formaram uma banda chamada Inconsciente Coletivo, nos anos 70. Fui falar como o João, na casa dele, na semana do show no Arena, aí ele ouviu minhas músicas, pegou o violão e já saiu tocando em cima. Eram todas simples, com acordes em dó maior, uma coisa bem folk. Ele falou: “Cara, tem um vizinho meu que vai curtir pra caramba esse teu som, é o Xandy”. Aí o Xandy veio, com violão e gaitinha de boca. Então meu primeiro show foi assim, nós três. Eu e o Xandy muito bêbados. A gente errou muito. A primeira música foi um fracasso, tivemos que parar, de tão ruim que estava. Ainda bem que a platéia era mais louca que a gente. Daí alguém gritou: “Vai de novo que tá legal”. Bom, se está legal então vamos! [Risos] E fomos até o fim.

Culturíssima: Logo você começou a trabalhar com jornalismo também?

Jimi: No curso entrei meio que no susto, ia mas não ia nas aulas, não sabia se eu queria realmente fazer aquilo. Aí em 76 retomei a Famecos: “Agora vou começar pra valer”. Dessa turma nova, fiquei muito amigo do Najar Tubino, Mário Nascimento, Eduardo San Martin, uma turma bacana. Um dia o Najar foi na minha casa, ele vivia passando lá pra fumar um de vez em quando no meu quarto. Minha mãe não podia nem sonhar com isso, mas enfim, um dia ele foi lá e eu faleu bah, vamos fumar. Ele disse não, “tenho uma sugestão pra ti, tem uma vaga de redator na Rádio Farroupilha, queria saber se tu está afim. Vai lá e fala com o diretor, que é o Telmo Tartarotti”. Fui lá e fiz um teste, em máquina de escrever, me deram umas notícias da France-Press, que chegava por telex, para reescrever. “Teu texto é bom. Começa aqui dia tal”. Ali comecei e não parei mais. Ironicamente, demorei nove anos para me formar na Famecos. Nunca tranquei a faculdade, eu me matriculava e acabava não indo nas aulas. Na época, o vestibular era específico para aulas de manhã e aulas à noite, como eu tinha feito para a manhã, só podia pegar as cadeiras do turno da manhã. Aquela burocracia de universidade. E eu só pegava emprego de manhã, então eu fazia umas cadeiras quando dava. Nessa época eu trabalhava na central de reportagem policial da Caldas Junior, e na Folha da Tarde [um dos jornais pertencentes à Caldas Junior] o editor de polícia era o Antônio Gonzáles, que era diretor da Famecos. Um dia fui entregar uma matéria pra ele, que falou: “Olha, tu tem que te formar porque agora está sendo exigido o diploma. Além de ser diretor da Famecos, teu editor aqui, sou presidente do sindicato dos jornalistas e não posso passar por cima dessas coisas”. É o seguinte, eu entrei no turno da manhã e tu sabe muito bem que eu trabalho aqui das seis ao meio-dia. “Então faz o seguinte, na próxima tu te matricula de noite e deixa que eu falo com o pessoal que está coordenando as matrículas pra eles ignorarem isso aí”. Foi o jeito que a gente encontrou para conseguir me formar.

Culturíssima: Como músico, você dá seus primeiros passos ainda na década de 70. Já na metade dos 80, explode uma cena rock muito forte, e com uma gurizada nova, com menos de 20 anos. Como você estava naquele contexto?

Jimi: Nessa época eu já seria o velho da turma. Em 83 os Replicantes começaram a ensaiar, Garotos da Rua começou também em 83, tocando no Rocket 88, bar que era do Mutuca. Aí começou essa onda de rock nacional, a gente começou a ouvir as coisas lá de cima e aqui começou a surgir essa cena. Em 83 eu fazia um espetáculo chamado Quem Tem Q.I Vai, que era com o Rettamozo, um publicitário, artista plástico, mora em Curitiba hoje, e com o Carlos Branco, da Branco Produções, e mais um pessoal que não vou conseguir lembrar os nomes. Nessa história conheci o Miranda, com quem mais pra frente faria o Atahualpa Y Us Panquis, que era uma decorrência do Quem Tem Q.I Vai, que acabou no final de 83. No verão de 84 eu estava com o Retta em um restaurante que a gente frenquentava na Cidade Baixa, batendo papo em uma mesinha de pátio, naquelas de ah, o show acabou, e agora, o que vamos fazer? Aí o Retta veio com essa, de Atahualpa Y Us Panquis, dizendo que era um bom nome para uma banda. Então começamos na casa do Branco, nós três, a fazer as primeiras músicas do Atahualpa. Mas tinha que ser uma coisa punk. O Branco não sabia o que era punk rock, ele era professor de violão clássico, o Retta era mais um cara de MPB, e eu já estava há muito tempo ouvindo Clash, Patti Smith, Ramones. Peguei os discos que tinha do Clash e levei pro ensaio e disse: oh, parte do punk é isso aqui, vamos roubar umas músicas. “Não, não, é muita cara de pau”, disseram. Daí começamos a fazer músicas próprias. O Branco já começou dizendo que não sabia tocar rock, mas mesmo assim íamos tentar. Falei da idéia pro Miranda e ele gostou. Depois de dois ensaios o Branco disse que estava fora, que aquilo não era pra ele. Então fomos ensaiar na casa do Miranda, que morava no fundo da casa dos pais dele, ao lado da casa da vó, que sempre vinha dar bom dia, levar lanchinho, aquelas coisas super bacanas. O Miranda convidou pra ser nosso baixista o Paulo Mello, do Taranatiriça, que ele tocava também, mas já estava saindo pra formar a Urubu Rei. Estava se formando essa cena. Aí o Atahualpa era eu, o Miranda, o Paulo Mello e faltava um baterista. A gente estreou em março de 84, em uma casa noturna chamada Taj Mahal, era a grande casa de Porto Alegre, que tocava new wave, punk. Estreamos depois de dois meses de ensaio, compomos as músicas muito rapidamente. Mas o engraçado é que não tínhamos baterista. Um dia estava eu e o Retta no Escaler, na Redenção, e apareceu um cara na mesa que se dizia chamar Alemão Ronaldo, ou Alemãozinho, disse ele, “para os íntimos”. A gente estava falando que faltava batera pra banda e ele disse que tocava. No outro dia falei pro Miranda que tinha aparecido um cara que tocava bateria. O Miranda perguntou quem era e eu disse que era um tal de Alemão Ronaldo. “Não, que nada! Alemão Ronaldo não toca bateria coisa nenhuma”. Uns dos poucos bateristas que eu conhecia na época era o Fernando Paiva, que tocava com o Nei Lisboa, que é uma coisa milhões de quilômetros do punk rock. O Paiva era um cara de formação jazzística. No primeiro ensaio que a gente fez com ele, veio cheio de pratos e tal, aí o Miranda, naquele jeito típico dele: “Velinho, pode esquecer esse monte de prato. Aqui é chimbal, caixa e bumbo. Senta a porrada que é punk rock!”. Até bem pouco tempo eu achava que os Replicantes tinham estreado antes de nós, mas estes dias vi que o Heron [Heinz, baixista] postou no facebook, celebrando os 31 anos da banda no Ocidente, em maio de 84. Pô, então Atahualpa é mais velha, porque estreamos em março daquele ano. Bom, mas na época eu estava com 29 anos, o Miranda tinhas uns 22 ou 23, o Paulo por aí também. Já eram mais novos que eu, e tinha uma gurizada bem mais nova que a gente. O TNT estava surgindo na época e o Charles [Master], o [Márcio] Petracco, o Nei [Van Soria], Flávio Basso, que depois virou Júpiter Maçã, tinham 14 ou 15 anos de idade e tocando pra caramba. No fim dos ensaios da Atahualpa, época em que o Paiva já tinha saído, a gente chamou o Castor Doudt, que era guitarrista na Urubu Rei, mas toca bateria também. Beleza, fechou a banda. Aí um fim de tarde, acabou o ensaio e ficamos jogando conversa fora, de repente aparece dois meninos, com umas roupas muito new romantic, muito Duran Duran, Prince, com cabelão, cheios de rendas. Era o Edu K e o Gustavo Xis, que chegaram com um caderninhos pra mostrar umas letras pro Miranda. Quando eles foram embora eu e o Castor começamos de galinhagem e começamos a rir: Pô, que isso, Miranda? Está pegando gurizinho agora? Então a gente começou a conhecer essa nova geração através do Edu K. A convivência sempre foi das mais legais. Nunca teve muita disputa, até porque cada um fazia seu tipo de som. A gente tocava junto, fazíamos shows coletivos.

Culturíssima: E como você vai para em São Paulo, no Estadão?

Jimi Joe: Em 85 eu tinha feito um programa independente na Ipanema, junto com o Marcel Plast, jornalista que mora há muitas anos em São Paulo, e com o Emerson Belo. Se chamava Maldita Hora. A gente falou com o Nilton Fernando, que era o diretor da rádio, e com o diretor comercial, com a idéia de fazer um programa com músicas novas, com coisas que a Ipanema não tocava na época, tipo The Cure, Echo & The Bunnymen, e coisas mais estranhas. Que a gente sabia que estavam tocando lá fora, mas ninguém tocava aqui, mesmo a Ipanema, que era bem aberta. O Nilton falou que o horário que tinha pra nós era da meia-noite até uma da manhã. E o nome surgiu justamente por causa do horário. Estávamos discutindo o nome, puxando nome de banda, nome de álbum, então falei maldita hora. Nos deram essa hora desgraçada, a gente não tem carro, vamos ter que descer aquele morro a pé, cheio de disco importado. A gente vai ser assaltado! Daí rolou um mês e pouco, não conseguimos patrocinador e não conseguimos pagar o aluguel do horário. EM 86 fui fazer rádio Atlântida, aí um dia o Nilton Fernando me liga perguntando o que eu fazia. Era produtor executivo, o cara que organizava entrevistas, fazia texto sobre agenda cultural e notícias. Então o Nilton disse que precisavam daquilo na Ipanema e perguntou se eu não queria ir pra lá. Avisei na Atlântida que estava indo embora e perguntaram quanto iam me pagar lá, disse que não era dinheiro, era química. Fiquei até 89 na Ipanema, com uma breve saída pra fazer o Diário do Sul, jornal que tinha da Gazeta Mercantil. Não estava mais acostumado com aquela coisa de redação de jornal grande, fiquei uns dois meses. Meu esquema na Ipanema era o seguinte: uma salinha, com uma máquina de escrever, que eu ficava escutando minhas músicas. Me deu uma espécie de síndrome de pânico de redação jornalística. Quando saí da Ipanema nesse período indiquei o Julio Reny como produtor. Aí passou um tempo e a Kátia Suman me liga: “Jimi, o Júlio é bacana, é legal, mas tu está fazendo falta”. Falei pra ela que não ia pedir pra voltar, e a Kátia disse então que faria um lobby pro Nilton Fernando. O Nilton me ligou então, e perguntou quanto eu ganhava no Diário. Lá eles pagavam muito acima de qualquer coisa em Porto Alegre. Pra chegar no valor, o Nilton me propôs um contrato de produtor executivo, mais um contrato de locutor e mais um contrato de não sei o que lá. Daí eu voltei e fiquei até 89, quando fui pra São Paulo, direto pro Estadão. Eu já tinha ido pra São Paulo uns anos antes, acompanhar alguns shows pela rádio e comecei a me apaixonar pela cidade. Encontrei o Eduardo Bueno [Peninha], que eu já conhecia daqui, mas ele não morava lá ainda. Em 89 o Peninha já estava no Estadão, e eu já cansado de fazer as mesmas coisas aqui. Liguei pra ele, pra bater papo, e me perguntou como estavam as coisas aqui. Disse que estava meio cansado da rádio, meio de saco cheio. Então ele disse pra eu tirar umas férias e ir pra São Paulo. Eu fui e, chegando lá, ele me apresentou ao editor do caderno Dois, do Estadão, que era o José Onofre, um baita jornalista, e disse: “O Jimi traduziu uns livros pra L&PM, está chegando agora na cidade, pode trabalhar com a gente aqui no caderno, pois estamos precisando de colaboradores”. O editor de música era o Luis Antônio Giron, que logo em seguida iria para a Folha. “Olha, sei que tua área é a música, mas não vou te encostar no Giron, ele é meio enjoado. Vou te encostar no cara dos livros, que é o Hamilton dos Santos, gente boa”, me disse o Peninha. Fiquei esse um mês de férias trabalhando como freelancer. Quando estava perto de voltar fui saber como iam ficar as coisas, foi quando o Onofre me falou para ir a Porto Alegre, pedir demissão e voltar para São Paulo que eu seria contratado. Aí foram quatro anos no Estadão, nesse meio tempo fiz música, fiz artes plásticas, tive a oportunidade de entrevistar um cara chamado Richard Hamilton, um dos pais da pop art, pré Andy Warhol. Lembro que fui apavorado pra essa entrevista. A editora de artes plásticas pediu pra quebrar um galho, não tinha ninguém pra mandar. Conhecia ele, mas pouco. Dei uma pesquisada nos arquivos antes de ir. O cara foi a coisa mais direta e simples do mundo. Eu tinha o maior medo de ser um papo que ele puxasse pro acadêmico e não, foi fantástico. Entrevistei muita gente lá. Foi uma escola, aprendi muita coisa. Foi a realização de vários sonhos, como entrevistar David Bowie, o pessoal do Yes, que eu curtia de anos e anos e jamais imaginei que fosse entrevistar. O Bowie ligou pra minha casa! Tu fica: como assim, sabe? Claro, é uma coisa que no jornalismo acontece. Combinei com a produtora, que disse que ia me ligar tal hora e me passar pro Bowie, mas como aquele horário estaria em casa, dei pra ela o telefone residencial. Era pra ser cinco ou 10 minutos de conversa, no máximo. Eu tinha aquelas secretárias eletrônicas antigas, com meia hora de fita cassete de cada lado. Quando ele ligou já apartei o rec, pra gravar o papo todo. A gente começou a conversar e eu olhando a fita, aí passou cinco minutos, aí passou 10, daqui a pouco estava acabando a fita já. Aí ele disse que o papo estava bom, mas ia ter que parar, pois tinha que entrar no palco, em um show em Lisboa. Tá bom, bom show [risos]!

Culturíssima: O que acha do jornalismo praticado hoje no Brasil?

Jimi: Acompanho, basicamente, via internet. Jornal impresso dou uma olhadinha de vez em quando, quando vou tomar um café de manhã. Acho que o jornalismo, em geral, está muito “Ctrl c, Ctrl v”, sem saber qual a origem daquilo ali. O cara está copiando a cópia, da cópia da cópia. Acho que falta mais apuração, investigar mais. São coisas que muitas vezes o leigo não vê, mas como jornalista tu sabe, é o detalhe da coisa. Tinha visto ontem uma notícia no NY Time sobre o tiroteio em Charleston (EUA), daquele ataque na Igreja. A repórter do NY Times entrevistou uma sobrevivente, que contava como tinha sido, que o atirador falava que estava fazendo aquilo porque eles eram estupradores das mulheres e queriam tomar conta do país. Aí depois vejo uma chamada no Jornal Hoje, da Globo, e o apresentador dizendo que o atirador matou as pessoas porque eram negras. Mas se tu for ver, em riqueza de detalhes na matéria, ela não menciona isso, claro, embora esteja implícito. São esses detalhes que eu sinto falta. Ou às vezes dão espaço para uma matéria que é uma bobagem e não tem explicação. A gente não tem mais o repórter na rua. Esses dias encontrei um camarada de longos anos, fotógrafo da Zero Hora, que estava fotografando uma manifestação de professores na Praça da Matriz. Falei para ele que legal, está conseguindo trabalhar na rua ainda. Porque hoje em dia o que mais se vê é foto de internauta, vídeo de internauta, tu liga no Jornal Nacional e tem vídeo de cinegrafista amador, ou então câmera de segurança. Falta ir pra rua, ver como é. Ficou muito telefone, entrevista por e-mail, por facebook, qualquer coisa, menos o cara a cara. O olho no olho é importante. A minha ânsia, como jornalista, é por mais qualidade na informação, mais profundidade.

Culturíssima: Como um cara do rádio, que trabalhou por muito tempo na Ipanema, como viu essa migração que a rádio teve para a web?

Jimi: O pessoal lamentou, eu também lamento um pouco, mas foi uma mudança que já vinha se anunciando por muito tempo, na verdade. O fim da Ipanema vem sendo anunciado desde 80 e poucos, quando fui embora pra São Paulo. A Ipanema sempre foi uma pedra no sapato da Band. O pessoal lá de São Paulo nunca entendeu muito bem o que era a rádio, pois a Ipanema nunca se encaixou em nenhum estilo. Tanto que houve várias mudanças de comando, tentando encaixar um estilo de alguma forma, o que nunca foi possível fazer. Hoje em dia não é uma perda tão grande porque se consegue ouvir rádio na internet em qualquer lugar. Tem essa questão de pagar dados, mas daqui a um tempo não vai ter, ou espero que não pelo menos, que vai ser tudo de graça. É uma pena, mas é um caminho melhor do que se tivesse acabado de vez. A rádio web é uma caminho, pessoas como o Cláudio Cunha, a Kátia Suman, criaram suas rádios web e estão se dando bem. Tem um nicho pra isso.

Culturíssima: E sobre a rádio Unisinos FM, como é o trabalho lá e as dificuldades de manter uma rádio educativa?

Jimi: O maior problema da rádio é a sustentabilidade. Felizmente a gente se mantém porque a reitoria da universidade mantém a Fundação Padre Urbano Thiesen. Comercialmente é quase inviável manter uma rádio educativa nos moldes que a gente tem de legislação hoje me dia, porque não pode anunciar preço, varejão, e o anunciante quer vender um produto e tu só pode dizer que o programa tem o apoio cultural institucional de tal empresa. O cara não quer saber disso, ele quer colocar o nome dele, o produto e quanto custa. Mas mesmo assim a briga segue, felizmente a gente segue. Temos coisas ali para melhorar, como o sinal tradicional, são coisas que exigem investimento, mas tem essa solução da web. A gente está na internet também. A Unisinos FM surgiu como rádio educativa e se mantém assim, temos que cumprir compromissos de divulgar a universidade e, ao mesmo tempo, a gente consegue manter uma programação própria, que é independente. Na parte musical, não temos obrigação de tocar nada, tocamos o que a gente quer. Não temos compromisso com gravadora, a coisa do jabá passa longe e temos um compromisso também com a informação, de trazer uma informação de qualidade. A gente está indo bem. Comercialmente falando, temos que melhorar esse lado da sustentabilidade, tentando arranjar apoiadores, o ideal seriam quatro ou cinco grandes empresas interessadas em divulgar o nome delas. Mas por enquanto a gente vai levando do jeito que dá, tentando manter ao máximo possível, com uma equipe pequena e brava, uma programação totalmente aberta. Tocamos desde coisas antigas, de MPB, rock, tem programa de música clássica, sempre tocamos coisas novas também. Não sei dizer se somos uma rádio moderna, mas estamos sempre tentando inovar.

Culturíssima: Sobre o transplante. Fisicamente e psicologicamente, como foi essa experiência?

Jimi: Eu fiquei 10 anos em hemodiálise. Tenho uma doença congênita chamada rins policísticos, que geralmente se herda do lado da mãe. Fiquei sabendo que tinha essa doença com 24 anos de idade, em uma casualidade, depois de sofrer um acidente de moto. A partir daí comecei a ter cuidado, a todo ano ir ao médico, fazer exames e acompanhar a função renal. Até que em 2003, andava me sentindo meio mal, com problema de anemia, aí o médico me falou que os rins já não estavam funcionando como deveriam e eu teria que fazer hemodiálise. O primeiro momento é um choque, depois tu vai se acostumando com a idéia e pensa: agora vem o transplante. Só que o transplante demorou 10 anos. Fiquei na fila por 10 anos e um mês. No começo desse período eu estava trabalhando na revista da Atlântida, junto com o Eduardo Nasi, que hoje está em São Paulo, e depois de um mês trabalhando só em casa, indo na hemodiálise três vezes por semana, um dia fui pra redação. Eu estava com um cateter no pescoço. O Nasi viu aquilo e: “Que isso? Não pode vir aqui assim!”. Posso sim, o médico liberou! Fui pra rua trabalhar, porque não vou me entregar. A maioria das pessoas pede aposentadoria. Não, vou seguir minha vida. E assim se passaram 10 anos. Um belo dia, em maio de 2013, estava indo trabalhar na Unisinos, recebi uma ligação e era a médica ali dos transplantes do Hospital de Clínicas. Ela me disse para ficar em jejum a partir daquele momento que tinha um rim que poderia ser pra mim. Isso era umas duas da tarde. Cheguei na rádio, gravei o fim de tarde e fui falar com o pessoas, explicar a situação, dizendo que estava indo pra casa. Aí passou o tempo, seis da tarde e nada, oito horas e nada, nove e nada. A Juliana, minha namorada, falou que era melhor eu comer, que achava que não ia rolar mais. Já tínhamos tido chamados semelhantes antes. Não, vamos dar um tempo, esperar eles ligarem. Aí 10 da noite e nada, meia-noite e nada, ela falou come e eu: não, vou dormir pra esquecer essa fome. Era 15 pra uma, ou coisa assim, a doutora Fabiane liga e diz: “Vem que é teu”. Rolou o transplante na madrugada do dia 17, e foi tudo bem. No outro dia eu comecei a urinar, depois deu uns probleminhas de infecção… Mas a sensação é indescritível. Primeiro assim, depois de 10 anos tu voltar a urinar pra valer é uma alegria que não tem cabimento, e aí começa a vir um turbilhão de coisas na tua cabeça, de pessoas que te ajudaram nesse processo, da Juliana que estava ali do meu lado o tempo todo, tu fica pensando na pessoa que doou o órgão. Da pessoa que foi embora e a família permitiu que aquele órgão fosse doado, e que te salvou, te dá uma qualidade nova de vida. É uma coisa que é mágica, às vezes tu chora, às vezes tu ri.. foi um processo meio longo de recuperação, na verdade.

Culturíssima: Como isso impactou na cabeça do artista?

Jimi: Olha, pra mim rendeu várias canções, baseadas nesse período de hospital, a maior parte delas pensando na Juliana, que foi a mão que me segurou. Literalmente me segurou, me manteve aqui, nesse plano. Então, está saindo um disco novo aí daqui a pouco, depois de muito tempo gravando com o Thomas Dreher, estamos encerrando ele. Outro lado disso aí, e foi idéia da Juliana em uma das tantas internações, com aquela coisa de hospital, meio irritado com sair, entrar, infecção, e aí um dia ela falou, para me acalmar: “Pois é, o Bebeto [Alves] transplantou um pouco antes de ti, está bem, com um fígado novo. O King Jim acabou de transplantar, está legal também, indo bem. Vocês podiam até fazer uma banda”. Em 2014, quando fiquei bem de verdade, falei primeiro não lembro com que, se foi com o Bebeto ou com o King Jim, e disse qual era a ideia e eles toparam. Lá por julho e agosto começamos a nos reunir ali em casa, e começamos a conversar sobre o processo do transplante, aí começaram a surgir músicas sobre o assunto. A gente não tinha pensado em nada assim, só em se juntar e ver o que acontecia. E nesse vai e vem de ensaio, foi muito rápido o processo, a gente estreou em 27 setembro, no dia nacional da doação de órgão, em um show na fundação Ecarta. A Glaci Borges, que coordena o projeto Cultura Doadora, da fundação Ecarta, ficou sabendo pelo King Jim que estávamos com essa banda. Ela nos convidou para tocar nesse dia, que era a chance que a gente precisava pra lançar a banda. Tínhamos umas sete músicas prontas. E depois a coisa evoluiu, hoje temos material pra fazer um CD e sobra coisa. Fechamos uma parceria com o Ecarta para uma série de aulas shows, em que vai um médico da área de transplantes em universidades do interior, aí tem uma palestra sobre o assunto de uma forma mais técnica, e depois tem o show que a gente faz, com essas canções que são leves e bem humoradas sobre um tema que é complicado. A gente fala, conta história, dá depoimentos. Às vezes não tem show, e vai só um de nós com o médico para dar depoimento. A primeira que participei foi semana passada, em Taquara, com a doutora Clotilde, da área de transplante infantil. Depois do meu depoimento ela retomou a palavra e disse: “Posso dar mil aulas, e essas mil aulas não vão valer o depoimento de um cara como o Jimi, que passou por esse processo todo. Daqui a cinco minutos vocês esquecer tudo o que eu disse, mas daqui a cinco anos vão lembrar do que o Jimi falou aqui”. Então a banda é isso, a gente trata com humor esse assunto, que é um tema grave. Nossa briga é para que as pessoas abram os olhos pra isso e saibam que aquela história de um salva oito é verdade. A gente sabe que é um momento de perda, que vai ser complicado, mas é importante o sim da família. Nossa campanha é essa.

Original em:
21/06/2015 – ENTREVISTA, ESPECIAL
http://culturissima.com.br/especial/jimi-joe-nenhum-dano-mental-grave-constatado

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